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A USP e o pixo: as contradições não têm carteirinha

No dia 21 de dezembro, sexta-feira, o vão do prédio da Geografia/História recebeu a 6ª edição da festa USP IN BASS. Muitos foram os comentários gerados pelos pixos que ficaram espalhados pelo prédio, corredores e banheiros da faculdade. Acreditamos que o acontecimento foi importante, porque pode nos ajudar a levantar uma série de reflexões.

usp2A USP IN BASS é uma festa que agrega vários estilos musicais da Bass Culture (um tipo de música que se utiliza de aparelhagem de som pesadas, com a música – especialmente os sons baixos – muito alta, tipo daquela que faz tremer o corpo inteiro). Foi organizada por dois coletivos independentes, a U-Dub 420 e a Under Crew. Música underground, numa festa dentro da universidade.

A USP é uma universidade pública. Pode parecer redundante afirmar isso nos espaços onde esse texto irá circular, mas é importante lembrarmos que para a imensa maioria das pessoas que moram em nossa cidade isso não é tão claro assim. Além de não ser claro que a USP é pública, o significado de “coisa pública” também é muito questionável.

O que resta de público hoje, para quem vive em São Paulo? Poucas praças e parques, em sua grande parte concentradas em regiões centrais da cidade, com banco anti-mendigo e grades de proteção; cemitérios (que muitas vezes são utilizados como parques, na falta desses); escolas e hospitais em situação calamitosa (precisamos lembrar que faltam vagas nas creches, as escolas parecem prisões e tem gente que morre na fila do hospital esperando atendimento?). É isso que a maior parte dos cidadãos de nossa cidade conhecem de público.

Um lugar em que a maioria dos estudantes e professores é branca e chega de carro (e nos cursos “de ponta” não chega a ter 1% de estudantes negros) não se parece em nada com todos os outros espaços públicos que existem na cidade. Depois das 20h, só quem é da “comunidade uspiana” pode entrar e, se você pertencer a essa comunidade, anda de graça num ônibus especial. A não ser que te informem, te expliquem direitinho, é impossível deduzir que a USP é pública.

Porque, por mais que a USP seja pública, ela opera a partir de uma lógica privatizante e privatista. Fundações e cursos pagos ganham o nome de “extensão universitária”; os funcionários são terceirizados; precisa ter carteirinha para entrar, para se alimentar, para praticar esportes. No ensino, existem empresas dando aulas (a editora Abril no curso de jornalismo, por exemplo), e na pesquisa, os interesses de empresas privadas determinam muito mais o tema de debate do que as necessidades populares.

Festas são tradicionais no meio universitário. Além de importantes espaços de sociabilização, têm também sua importância social. Muitos artistas importantes surgiram no cenário universitário, e shows importantes para a história da música brasileira tiveram como palco a universidade. Basta lembrarmos do show proibido de Gilberto Gil no auditório vermelho da POLI, em 1973, um marco musical da luta contra a Ditadura Militar.

As festas dentro da Universidade têm sofrido com uma ofensiva conservadora. A proibição da utilização do espaço – público – para as festas, de entrada das pessoas e de cerveja no campus são táticas recorrentes que, infelizmente, têm ganho espaço. Quem não tem vínculo com a universidade é proibido de entrar de carro ou a pé no campus Butantã após as 20h – e isso inclusive está escrito no convite para a USP IN BASS DE CARRO: “APÓS 20H ENTRA NA USP SOMENTE COM CARTEIRINHA DA USP”.

A Universidade de São Paulo é um espaço público, mas somente para aqueles que passaram por um filtro: vestibular ou concurso, a USP é mais pública para professores e estudantes, menos para funcionários, menos ainda para os terceirizados, que nem podem utilizar o restaurante universitário. No mesmo dia da USP IN BASS, um golpe contra as festas e a música produzida dentro da Universidade foi desferido com a destruição do Canil, importante espaço na ECA em que aconteciam muitos shows, festivais e apresentações culturais dos mais diversos tipos.

A USP IN BASS é mais uma das festas que ousa ocupar o espaço público privatizado da Universidade de São Paulo. E, junto com a festa, trouxe contradições do mundo que muitas vezes não conseguem passar pelo portão da Universidade. Pudera, as contradições não têm carteirinha.

O prédio da História/Geografia, durante a festa, foi pixado. Paredes, janelas e, inclusive os banheiros, recém-reformados. Em período de férias escolares, a reação ao ocorrido aconteceu na internet. Indignados com a intervenção, vários alunos tiraram fotos do local e as publicaram no facebook, o que acabou ganhando grande repercussão entre aqueles que estavam presentes na festa, provocando longas discussões na página do evento e em grupos da FFLCH.

Grande parte dessas discussões – acompanhadas, em vários momentos, de xingamentos e ameaças – contava, principalmente, com dois tipos de argumentos: Um deles considerava as pixações uma espécie de possível “carta branca” da reitoria para acelerar medidas que proíbem festas no campus. Esse argumento se utilizava da importância da luta do movimento estudantil, e afirmava como aquelas pixações representavam um retrocesso à luta contra repressão na universidade, que tal medida acabaria por fechar ainda mais a USP à população e apontando, contraditoriamente, os pixadores como inimigos. O outro argumento, utilizado por aqueles que estão alinhados às medidas tomadas pela reitoria, afirma que o vandalismo é um dos preços que se paga pela “inclusão social” na universidade.

Apesar dos dois argumentos aparentemente se colocarem em oposição, temos, em ambos, algumas similaridades: a maneira rasteira como tratam os sujeitos protagonistas desse ato, concebendo-os de maneira simplista, como infratores, aqueles que devem ser punidos; e uma concepção falha ou idealista sobre o significado de instituição pública. Se de um lado temos o discurso conservador, daqueles que se utilizaram do fato de maneira oportunista, temos também uma grave lacuna apresentada pelos que se colocam ao lado do movimento estudantil, marcado pela ausência de debate sobre aqueles que estão do outro lado do muro da USP, os jovens da periferia. Ora, se o movimento estudantil, que se diz tão preocupado com as questões ligadas às demandas populares, coloca-se de maneira conservadora contra uma expressão ligada à periferia, como então poderá impulsionar debates ligados a esse setor da sociedade, como o das cotas sociais e raciais na universidade, por exemplo?

Entendemos que a intervenção do pixo – grafado com “x”, assim como é reivindicado pelos próprios pixadores – marcou a presença da periferia na universidade. Essa, infelizmente, tem sido a única maneira que ela tem de se fazer presente na USP; e deve ser entendida também como uma maneira desses jovens responderem ao modo como a classe média, predominante na universidade, trata esses sujeitos. Historicamente afastada dos pobres, a USP se mantém cada vez mais restrita, branca e improdutiva para aqueles que a sustentam. O inimigo que se coloca diante desse fato não são os jovens pixadores, mas sim a estrutura anti-democrática e elitista na qual é concebida essa universidade.

Há ainda quem diga que os pixos feitos durante a USP IN BASS são vandalismo porque “não dizem nada, são os nomes das pessoas”. Com isso, querem dizer que não existe propósito artístico nem político no pixo, que é somente uma expressão do individualismo. Mas, se olhamos mais de perto, se nos lembramos que a política está, em princípio, em toda ação, se tiramos a lente do nosso preconceito dos nossos olhares, conseguimos entender que muitos dos jovens que pixam seu próprio nome nas paredes da cidade o fazem porque é o único jeito com que podem, de alguma maneira, registrar sua existência, encontrar-se numa cidade que não foi feita para eles, que não mostra pessoas como eles se dando bem na vida.

Para boa parte dos jovens da periferia, o único jeito que existe para estar na USP é através do pixo, com o que buscam chocar a nossa normalidade, mostrar que eles existem. Boa parte dos jovens que pixaram a USP se defenderam na internet chamando os estudantes da USP de “bando de playboy mimado” ou coisa do tipo. Ora, isso é a mesma coisa que dizemos quando dizemos que a universidade é elitizada, mas acrescido de todo o ódio que tamanha exclusão gera.

Por outro lado, é provável que se utilizem do que aconteceu para acelerar a proibição de festas, para justificar com mais força o fechamento do campus e a elitização da USP. Mas somente se paramos de buscar culpados e procuramos entender as contradições que envolvem o processo é que conseguimos entender o problema de fato.

Por mais que se discorde ou concorde com o pixo, não é culpado o jovem que deixou sua marca ali, nas paredes da USP, e não sabe dos problemas que existem dentro da Universidade (como também a Universidade não sabe dos problemas dos bairros em que vivem essas pessoas). Ele só sabe que aquele lugar é um lugar em que ele nunca entrou, não vai entrar, não pertence a ele nem aos seus filhos ou conhecidos.

O problema central, que gera todas essas contradições, é a estrutura completamente elitista, feudal, fechada e excludente da Universidade de São Paulo. Só conseguiremos incidir nessas contradições transformando a USP. Debater e implementar cotas sociais e raciais pode ser um primeiro passo, assim como defender os espaços estudantis e as festas. Mas só conseguiremos superar essas contradições quando a USP for uma universidade verdadeiramente pública e popular. Uma universidade em que o povo tenha espaço e voz, participação e poder. Uma universidade em movimento.